domingo, 30 de setembro de 2007

Considerações

Dizia Pessoa que o melhor do mundo são as crianças. E todos achamos o mesmo. Nas crianças está a verdade, nelas a inocência, nelas a pureza. Contudo, uma das profissões mais desgastantes e que, segundo se ouve dizer, leva mais gente a visitar psiquiatras, é a profissão docente. Porquê? Não são os putos um poço de doçura, umas mentes sem maldade? Parece que não. Pelo menos para os professores. E Pessoa não era professor.
Acabei um curso de ensino há alguns meses, no qual ouvi em diversas disciplinas relacionadas com a pedagogia, o desenvolvimento curricular, a sociologia da escola, etc, que o nosso papel é mudar. Por nosso entenda-se os dos novos professores. E mudar o quê? Mudar toda uma cultura escolar que é suportada por pessoas que não tiveram a formação pedagógica que agora nos foi dada. Pessoas que entraram no sistema porque não as havia suficientes. Pessoas que entraram na escola sem conhecer estratégias de abordagem de conteúdos, sem conhecer estratégias de abordagem pessoal com os alunos. Pessoas que viam a sua carreira prosseguir sem que grandes esforços tivessem que ser feitos. Pessoas que não se esforçavam por melhorar o sistema de ensino, porque lhes era mais confortável ganhar o seu ao fim do mês, e dispensar responsabilidades na hora de divulgação de resultados dos alunos, respondendo simplesmente: "-São todos uns burrinhos".
Este cenário escabroso, de alguma forma já suspeitado pela sociedade em geral, foi-nos pintado ao longo do curso, e sorrimos, porque de facto achávamos que era em nós que residia a revolução. Achámos que a classe docente era efectivamente a culpada pelos maus resultados dos alunos, pela péssima formação que provam ter. E estávamos à espera de chegar à escola em ano de estágio, e sentir o tão falado choque da realidade, em que as teorias de gabinete que nos são incutidas, podiam deixar de fazer todo o sentido, por haver questões básicas ainda por resolver nas escolas.
Chegado à escola, enfrento de imediato a resistência. Os professores colocados há anos numa escola não são fáceis de convencer. Convencê-los de coisas importantíssimas para nós, e totalmente dispensáveis para eles. Falo por exemplo da discussão sobre maneiras mais eficazes de avaliar os alunos - especialmente nas línguas estrangeiras, em que várias competências deveriam ser tidas em conta, e não o são. É mais fácil deixar estar como está, porque desta forma não é necessário rever toda uma conduta de anos, que parece funcionar, e por isso não tem que ser revista. Falo também da programação de actividades mais dinâmicas para os alunos, como visitas de estudo. Recusam-se. Justificam com o medo de que as faltas que essas visitas implicam sejam prejudiciais para a sua contagem de pontos, para assim chegarem mais rápido à titularidade. No entanto, quase imploram para que as actividades que realizaremos na escola incluam a dispensa de aulas dos alunos, provavelmente para que nos entretenhamos nós com eles, podendo eles fazer livremente o que bem lhes apeteça durante uma tarde ou manhã.
Uma professora já quase em fim de carreira elogiou "a nossa coragem" por escolhermos a profissão docente, quando o cenário é deprimente. A senhora pintou o nosso futuro como um vazio sem esperança. E uma mão cheia de perguntas assola-me: se eu não tivesse escolhido isto, onde estaria? se eu tivesse escolhido "Humanidades" mas outra área que não as línguas que estaria a fazer? Direito? Seria mais um dos milhares de advogados deste país que ocupam pisos e pisos de escritórios por essas cidades fora, a definhar em frente a processos e processos menores e sem a mínima importância ou interesse para eles? Se tivesse ido para as ciências, será que teria escolhido medicina? Será que o teria conseguido? E se o tivesse conseguido, estaria feliz? Fá-lo-ia com gosto?
A profissão docente é ingrata, de facto. Aquilo que me demarca, e estou convencido disso, é o jeito natural para as línguas. Porque haveria eu de renunciar a isso porque a sociedade me incute a ideia de que não serei útil? Quem disse? Quem me diz que não posso explorar aquilo que de facto faço melhor, devendo preferir em primeiro lugar a (suposta) segurança e o status que outra carreira qualquer me daria. E o que é feito do gosto, da vocação? O que é feito da vontade de mudar alguma coisa ao nosso lado, por pequena que seja, em detrimento de uns quantos mais euros ao fim do mês, e a assunção de um estatuto e respeito sociais que só alimentam a divisão social em bons-maus, ricos-pobres, formados-não formados? Ou serei um sonhador com ideias parvas e naives?
Aquilo que me rói é entrar no mundo da empresa "escola", e ver que ela não passa disso mesmo. De uma empresa com muitos interesses, legítimos todos eles, só havendo um que sendo hipocritamente considerado publicamente como o mais importante, é deixado de lado, e que é o dos alunos.
Como vinha a dizer atrás, os professores são primariamente culpados pela situação. Porém, venho a descobrir que o facto de serem assim, advém da situação em que se encontram por pertencerem à máquina do Estado, que lhes ata as mãos e os pés, e depois exige deles que corram até muito mais longe do que têm conseguido correr.
Há todo um conjunto de burocracias e regras ditadas pelo Ministério da Educação que não permitem aos professores (pelo menos àqueles que querem) inovar um pouco, seja na abordagem do “programa”, seja na elaboração dele. Há uma panóplia de afazeres dos professores na escola que não deixa que estes se possam concentrar totalmente no melhoramento das aprendizagens dos alunos. Há, em suma, uma máquina que tem que ser mantida, uma máquina organizativo-burocrática que sem os professores não funciona, e que é para eles mais relevante em termos de progressão na carreira do que a maneira como dão aulas. Os únicos que teriam voto na matéria para julgar a atitude dos professores dentro da sala de aula seriam os alunos, e esses são reduzidos a meros observadores do processo, ou causadores de problemas, sem autoridade para dizerem de sua justiça se a escola como existe lhes faz sentido ou não.
Tudo isto faz da escola uma empresa muito complicada, mas fascinante. Pelo menos eu vejo-a assim. É muito fácil sermos bons professores fora do sistema público de educação. Tudo nos é dado de bandeja, temos liberdade de actuação, e logo fazemo-lo com mais gosto. O que é necessário na escola pública é a verdadeira preocupação com os problemas que ele oferece, e para isso temos que estar genuinamente interessados em ajudá-la. Sem apoios, remunerações e respeito, esta tarefa torna-se difícil. Mas com vontade e com uma adopção genuína do lema de Fernando Pessoa, talvez possamos dia a dia concretizar pequenos passos que levem à tão desejada mudança.

2 comentários:

siga bandido disse...

Encarar com optimismo, mesmo que este escasseie no panorama "decadente" do ensino público (do qual até guardo optimas recordações, ao contrário da grande maioria dos críticos). Quando era assim a modos que puto, quando ainda não tinha a priemira classe feita sequer, desde esses tempos "remotos" da minha fútil existência, que pegava em agendas que a minha mãe recebia das selecções e fazia "ondinhas", como se fosse um quatro, para uma classe imaginária, sentada nas escadas da minha casa. Depois evoluí e passei para os bonecos de pelúcia e, quando já sabia ler, escrever, contar e realizar aqueles cálculos manhosos da matemática, o alvo passaram a ser os meus vizinhos. ADORAVA fazer "testes" no PC topo de gama que o meu irmão (o génio que queria um curso complicado), num programa chamado "uorde" quarquer coisa.
Passei de cozinheiro (sim, foi a seria a minha 1ª opção ocupacional :p) a professor (primário, de EVT, História, Matemática e Ciências). E aí me mantive por muitos e bons anos: 13 ou 14, não me recordo já. E por o panorama ser tão negro, no 12º ano decidi enveredar pela Psicologia (e não pela biologia como pensava seguir). Mas guardo o sonho de (tal como alguns COM MUITA SORTE, não é Diogo? lol :p) conseguir um dia um lugarzinho, pequenino que seja, na classe docente. Seja esse lugar precário ou não... Porque hoje sei que esse sim, é o meu sonho. Sempre foi, e sempe o será (seja em que área for)...

The Perfect Drug disse...

A garra está em ti, e tu sabes que consegues fazer mudanças, nem que sejam pequenas! Keep up the good work! ;)