sábado, 22 de dezembro de 2007

Sou História


Não posso deixar de sentir saudosismo ao ver a alegria de tantos cidadãos de países habituados a serem relegados para a diminuidora categoria de "países do leste" que agora podem passear-se pela Europa sem passar pelo transtorno da identificação do passaporte, devido ao alargamernto do espaço Schengen. Quando ouvimos dizer "agora pode-se ir de Portugal à Estónia sem parar em nenhuma fronteira" estamos a presenciar um pensamento contrário ao que realmente existe. São eles que agora podem vir da Estónia até Portugal, porque do nosso lado já há muitos anos que andamos por onde queremos, inclusive pelo leste da Europa. Falo por mim, que ao passar da Alemanha para a Polónia, testemunhei vários colegas meus, a pedir que lhes carimbassem o passaporte. É obvio que não era necessário carimbo nenhum, bastava os guardas darem uma rápida vista de olhos, e entrávamos sem problemas em solo polaco. Na altura não pedi carimbo nenhum, até porque, para além de ser uma lamechice pegada, me parecia ser uma falta de respeito para com os guardas, que ali seriamente faziam o seu trabalho. Aos olhos daqueles polacos não passávamos de uma cambada de putos mimalhos da Europa ocidental, interessados em passar a fronteira apenas para ir comprar dezenas de pacotes de tabaco Marlboro ao preço da chuva. Eu não fui comprar tabaco, mas tenho consciência de que fui pelo gosto que me deu sentir-me, pela primeira vez, num "país de leste".

As diferenças eram abismais. Vindos de uma cidade alemã limpa, organizada e iluminada (Görlitz), e cruzando apenas uma ponte sobre um rio, deparámo-nos com ruas sujas, carros velhos e podres, casas com anúncios pintados a tinta nas paredes numa língua incompreensível.

Muitos meses mais tarde, a experiência repetiu-se. Numa viagem pela Letónia, Lituânia e Polónia, ao chegar a cada fronteira, principalmente a meio da noite, sentia qualquer coisa simbólica, mística, que me transportava para uma História que não vivi. Lembrava-me dos aparentes contos fictícios contados pelos meus pais e avós sobre idas a Espanha, e em cujos regressos vinham cheios de produtos clandestinos escondidos em todos os espaços possíveis que houvessem no carro onde viajavam. Eu não precisava de esconder nada, mas sem dúvida o medo das histórias dos meus pais e avós tomava conta de mim quando aqueles guardas tão sérios e autoritários nos pediam passaportes para levá-los e fazer sabe-se lá bem o quê com eles, durante uns 20 minutos. O meu medo era místico. O das pessoas da terra não era. Aquela gente, que provavelmente cruzava as fronteiras com bastante frequência, via o controlo dos passaportes como uma rotina aborrecida e perigosa.

Esta rotina, a que assisti ainda na viagem para a República Checa e para a Hungria, acabou esta semana para milhões de pessoas. Fico feliz e imagino o alívio daqueles cidadãos em destruirem de vez a cortina de ferro que ainda os fazia permanecer no passado obscuro que querem eliminar. No entanto, também me senti feliz nos momentos que passei por aquelas terras, principalmente pelo romantismo e pelo misticismo de não poder viajar em auto-estradas porque não existiam, nem meios de transporte confortáveis; de não me fazer entender em língua nenhuma; de ficar especado sem dinheiro no meio de um campo lituano à responsabilidade de um condutor de autocarro reticente em aceitar que o veículo estava a arder. Marcas de uma Europa que está a desaparecer, e que os que virão depois de mim só conhecerão ao ler nos livros ou ao ouvir contos fictícios narrados por pessoas como eu.


Foto: Cracóvia, 9 de Junho de 2006 (dia em que completei 21 anos)

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