segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Os meus filmes do ano - V

“New York is where everyone comes to be forgiven”

Porque é que SHORTBUS não é um filme pornográfico?
Entendo a pornografia como um escape. Uma não realidade que se disfarça dela, e por isso é tão abertamente condenada quanto apreciada. A pornografia serve como estimulante sexual, como objecto de voyeurismo, como entretenimento. Não tenciona fazer pensar, mas também não nos incomoda, porque sabemos, ao vê-la, que não tem nada a ver connosco. Que é uma encenação, na maior parte das vezes sem sentido, sem verosimilhança, sem grandes preocupações técnicas. Em suma, a pornografia é perfeitamente desmerecedora da importância que lhe damos, como elemento nefasto das sociedades, como signo da exploração do corpo feminino, etc. É uma mera fantasia desprovida de realismo, e, por isso, tão apelativa quanto irrelevante.
Dizer que SHORTBUS é um filme pornográfico é reduzir o filme às cenas sexuais que nele são apresentadas, de facto, sem qualquer tipo de censura. É destacar o nosso preconceito e a nossa formatação anti-pornografia para a fila da frente da nossa capacidade crítica, fazendo aquilo que a própria pornografia nos ensinou a fazer: a sentir que devemos rejeitar qualquer cena estritamente sexual do nosso dia-a-dia racional, e mantê-las fechadas a sete chaves nesse submundo a que todos inevitavelmente pertencemos, mas ao qual não podemos admitir (gostar de) pertencer.
Este filme, realizado pelo jovem John Cameron Mitchell, é, para mim, um paradigma daquilo em que o cinema acabará por se tornar – um espelho cada vez mais fiel daquilo que somos. Não sou adivinho, nem percebo de cinema como para fazer uma afirmação deste género, mas aquilo que SHORTBUS me provou é que é possível transpor para o cinema o sexo real, aquele que praticamos no dia-a-dia, aquele que é de facto inato ao ser humano... aquele que a pornografia não apresenta. SHORTBUS mostra o sexo como metáfora, como uma expressão daquilo que de facto nos move, dos sentimentos, das relações afectivas, dos problemas guardados no secretismo da consciência solitária que existe em todos nós. O sexo ligado às emoções, às acções e às reacções quotidianas e, por isso, parte natural da vida humana, o sexo como manifestação física das nossas frustrações, felicidades, dúvidas, medos, tranquilidades. E uso o plural de forma propositada, porque em SHORTBUS a chave é precisamente o carácter plural na abordagem das personagens. Ou seja, não há uma centralização numa personagem apenas, mas sim num conjunto de pessoas que descobrem um caminho a seguir na tentativa de solucionar o problema que têm. E cada um tem um problema diferente, como cada um de nós.
SHORTBUS ousa olhar-nos de frente, expondo vidas de pessoas a partir das situações mais íntimas, mais privadas, mais escondidas, mais individuais em que temos o direito de nos encontrar. No início do filme, o mais perturbador é o grafismo nu e cru das cenas sexuais. No fim, a sensação incómoda advém do facto de nos vermos retratados num ecrã de cinema, despidos em frente a ele, na intimidade que até agora não permitíamos ao cinema roubar-nos. Uma intimidade verdadeira, em que a pornografia não se atreve a entrar. Uma intimidade verosímil, possível, sem as conversas trabalhadas, pseudo-realistas ou românticas de que qualquer filme acaba sempre por ser feito.
Este panorama, adornado pelo toque humorístico, pela incrível cumplicidade do elenco e pela banda sonora (verdadeiramente original) fazem deste filme, como alguém já disse, um “ovni” na sétima arte estreada em 2007. E não tenho dúvidas de que é um risco e um arrojo propor o visionamento de SHORTBUS a toda a gente. Eu próprio fui forçado a rever a minha tolerância e o meu espírito crítico por causa deste filme. Mas atrevo-me, e escrevo a célebre expressão: aconselho vivamente.

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