domingo, 21 de outubro de 2007

O leitor








Nos últimos tempos tenho tido a felicidade de conhecer autores actuais que escrevem em alemão, cujas obras se revelam de grande relevância para perceber o pensamento alemão pós-guerra, nomeadamente a análise racional e ponderada do fenómeno do Holocausto, da relação entre as duas Alemanhas, e da emigração. Estes livros, todos eles publicados nos anos 90, foram responsáveis por grandes caminhadas minhas por essas ruas fora, deambulando sem prestar qualquer tipo de atenção ao que me rodeava, estando totalmente absorvido por pensamentos que lia nestas obras, e que me desafiavam a rever todo o tipo de concepção de ser humano, de história, de responsabilidade, enfim, de ideias que o tempo encarrega de pregar-nos ao cérebro, e que, só a muito custo, arriscamos a ousadia de as pôr em causa.


Terminei agora mais um desses livros. "Der Vorleser", de Bernhard Schlink (em português, "O leitor" - Edições Asa - 1998).


Michael Berg, de 15 anos, envolve-se com Hanna Schmitz, mulher misteriosa, com mais 20 anos que ele. O romance é-nos contado pela voz de Michael, de maneira autobiográfica. Michael relata o amor em relação a Hanna enquanto miúdo, e que se manifestava pela forma de um ritual, que todos os dias se repetia: tomavam banho juntos, faziam amor, e ele lia-lhe as grandes obras literárias da história.


Um dia, Hanna desaparece sem deixar rasto. O jovem Michael cresce, e volta a encontrá-la durante um julgamento de crimes de guerra nazis, que observava enquanto estudante de Direito. Hanna está sentada no banco dos réus.


O que se sucede a partir daqui é uma inquietante reflexão sobre os crimes hediondos do 3º Reich, mas pela perspectiva da história de Hanna. Ela é a criminosa que simboliza o violento regime, e, no entanto, ela é a mulher que protagonizou a tocante história de amor que ocupa toda a primeira parte da obra. Como nos situamos como leitores, em relação a Hanna? Sentimos pena, ao sabê-la uma das acusadas? Odiámo-la repentinamente? E por que razão a odiamos? Por ter abandonado Michael para ir servir em Auschwitz, ou por ser mais uma das responsáveis pela morte de milhões de pessoas? É quando nos encontramos neste dilema que ficamos a saber o segredo que marcou todo o percurso de vida de Hanna que ela ocultou de todos, e que nos complica ainda mais a pesada indecisão entre "julgar" ou "compreender".


De qualquer forma, enquanto leitores, a distância é-nos confortável. Porém, a voz é de Michael, e é a voz angustiada de um homem que, tendo amado a criminosa, se pergunta se acusando-a não se estará a trair a si mesmo e ao seu inevitável passado.


A partir da voz de Michael tomamos contacto com a voz de uma geração a quem foi incumbida a dolorosa tarefa de avaliar se devem olhar para os próprios pais com vergonha ou com condescendência.



Os mais cépticos dirão que sobre o Holocausto já tudo foi dito, e que reflexões deste tipo só provam a vontade dos alemães de justificarem os actos do 3º Reich. Eu digo que o cepticismo não é mais do que a vontade de não pensar sobre uma questão humana tão essencial quanto desagradável. E mais, este cepticismo é querer limitar toda esta questão à explicação simplória que a historiografia do século XX tratou de nos dar, e que, ao invés de impedir que nos esqueçamos do horrendo, fomenta uma visão do horrendo que mais não é do que um cliché, que se resume nos livros de história ou no cinema a uma frase, que dizendo tudo, não diz absolutamente nada, que é - "O ser humano é capaz das maiores atrocidades. "



"O leitor" foi o primeiro livro alemão a conseguir o primeiro lugar na lista de best-sellers do New York Times, e é, a seguir a "O perfume", o livro escrito em alemão com maior projecção em todo o mundo. Foi também vencedor de vários prémios literários na Alemanha, Itália e Finlândia.


Por todas estas razões, a leitura impõe-se, principalmente porque está traduzido para português. Neste momento, está já em preparação a adaptação do romance para o cinema, pela mão dos aclamados Stephen Daldry e Scott Rudin, realizador e produtor, respectivamente, do filme "As horas", estando Nicole Kidman a assegurar o papel de Hanna. As primeiras filmagens já começaram em Berlim e Görlitz, uma pequena cidade alemã junto da fronteira com a Polónia, onde existiu uma grande comunidade judia. Esta cidade fica relativamente perto de Leipzig, onde fiz Erasmus, e por isso, dei lá um saltinho. Aqui ficam algumas fotos:








1 comentário:

RicardoRuben (aka Rato) disse...

Caro Luís,
Eu já tinha ouvido falar desse livro, mas nunca me deu vontade o comprar, pensando eu que seria mais uma das já mais do que batidas histórias pós-modernas sobre o acto da leitura ou da escrita. Mas depois deste post, fiquei convencido! ;) Pena é que não o possa ler em alemão.
Abraço!