quinta-feira, 17 de abril de 2008

Elogio às ceifeiras


“Las ideas no duran mucho, hay que hacer algo con ellas”
(Santiago Ramón y Cajal, médico espanhol)

Saio de casa. As pedras de granizo esbarram-se contra o pára-brisas, e reparo nos rios de água a correr pela minha rua abaixo. Penso ‘estou atrasado que merda de tempo que pouca disposição para ir para a escola’.
O caminho é feito com dificuldade. Há meteoritos de gelo a cair no meu pára-brisas e a sair centésimas de segundo depois disparados pelo limpa-pára-brisas. Penso ‘que confortável ter que fazer o meu caminho diário a 20 km/h como que protegido por um cobertor de partículas geladas que tipo uma atmosfera me protegem embora eu esteja perfeitamente imune à sua temperatura visto ir tranquilamente dentro do meu carro (atrasado) a ouvir o meu cd que toca toca toca e eu não me farto de o ouvir embora fosse mais lógico prestar atenção ao que os locutores da rádio dizem sobre os distritos em alerta laranja no dia de hoje’.
Vejo a estação de comboios à minha esquerda, e em 5 segundos a chuva já não existe, nem o granizo, nem o dilúvio. Seria uma nuvem.
Chego à escola. Os parques de estacionamento fora do recinto escolar estão cheios de carros, talvez de professores, talvez de alunos (muitos também têm), talvez de gente que veio visitar a feira (fazer compras com partículas de gelo a cair-nos em cima tem que ser uma experiência alucinante).
Entro com o carro na escola pela primeira vez e chego atrasado.
A sala dos professores é confortável. Penso ‘e se os alunos tivessem uma sala dos alunos que fariam dela será que a usavam? será que era injusto era mimá-los? era ser escola facilitista pouco dada à demonstração de autoridade?’
Estão à minha espera. Começamos a labuta.
Depois de uma luta incansável para terminar a tarefa proposta, fico finalmente livre. Há que trabalhar mais, mas a disposição não deixa. Converso. Almoço.
A tarde começa, e o tempo não está melhor. Penso ‘vou ver o meu mail olha lá estão os profs a falar sobre a ministra o acordo o estatuto as injustiças o que a X disse o que a Y pensa’, abro jornais portugueses, vou ver a parte do cinema, e vejo que não há filmes que me interessem. Penso ‘vou ver um jornal alemão já não vejo há muito tempo olha um artigo sobre Zapatero feminista’. Leio e o autor do artigo pergunta “que se passa no sul?”, já que na Itália temos um crente na força intelectual masculina e em Espanha (país berço do conceito de “machismo”) um crente na força intelectual feminina. Penso ‘e Portugal aqui onde fica se o autor falasse no nosso país que diria? ou se calhar não diria nada não há nada para dizer deste país está aqui como poderia não estar e os profs continuam a falar do estatuto’. Junta-se entretanto uma equipa expressiva de aficionados da temática o-novo-estatuto-é-uma-grandessíssima-bosta-e-esta-ministra-não-caiu-porque-isso-acontecendo-o governo-caía-junto-com-ela, e já não me consigo concentrar na leitura do artigo sobre Zapatero feminista, porque está em alemão, língua exigente no que diz respeito à concentração durante a leitura.
Saio, atravesso a multidão que parla, e vou assistir à aula de uma colega.
Durante a aula, atravessam-me pensamentos infindáveis sobre a actividade docente, e penso que é uma profissão fascinante. Salvaguardo aqui a minha opinião de que o adjectivo “fascinante” tem muito mais que se lhe diga do que simplesmente “derivado do nome (ou substantivo, em versão pré-TLEBS) 'fascínio'", já que um fascínio pode ser uma coisa boa ou má. Os feitiços são uma forma de fazer com que as pessoas fiquem fascinadas por determinada coisa. E a partir deste pensamento sacado da manga, a discussão pode seguir variadíssimas direcções, se pensarmos tão-somente no amor, feitiço mais do que evidente, e que pode ser considerado bom ou mau. Depende da disposição, e a minha hoje está como a do tempo. Se falar nisto, dispararei, qual limpa-pára-brisas, partículas de mau humor que podem gelar alguém.
No fim da aula, penso ‘tenho vontade de escrever não sei exactamente o quê mas é preciso aproveitar estes momentos como dizia aquele homem que a mulher espanhola citou no congresso las ideas no duran mucho hay que hacer algo con ellas por falar nisso tenho que ver quem foi’. Ao chegar a casa reparo que Ramón y Cajal, autor da frase, não foi um escritor, mas sim um médico e histologista espanhol (e vou ver o que faz exactamente um histologista e aprendo que estuda os tecidos biológicos, a sua estrutura, formação e função).
Penso ‘que cena mais Virginia Woolf pôr-me a escrever o meu dia será que ela pensava nestas cenas claro que não alta estupidez ela era génio demais para isso para ter razões tão altamente pequenas para escrever’, e utilizo a palavra génio numa conversa virtual com um que eu conheço, e chego aqui a este ponto em que tudo me parece incrivelmente absurdo e em que a existência se me desenha difícil, ridícula e grande demais para se poder escrevinhar sequer uma ínfima parte dela num texto notoriamente ficcional, pelas palavras que escolhi, seleccionei e pensei, em vez daquelas que poderia ter escolhido, seleccionado e pensado.

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